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23 de janeiro de 2014

Réquiem a Eugene Ironshield

Conto clássico de 2008. Achei por acidente!




Finalmente paramos. Com a precisão de um relógio, há exatas quatro horas desde que começamos a marcha. Enfim pudemos buscar a sombra dos carvalhos ao nos afastar da estrada. Eu odeio a maldita floresta úmida.

Fungo um pouco do muco que acumulava em meu nariz e garganta. Prefiro engolir a cuspir na frente de meus dois companheiros sobreviventes. Com certeza estava gripando.

O corpo mole e enjoado, e a garganta travada, quase um suplício para engolir a ração seca... A Maldita ração seca. Com gosto de papiro, mas que parecia não incomodar meus colegas... Especialmente o Druida, que seria o mais habilitado para nos conseguir carne fresca ou frutas. Contentava-se com a ração.

O Monge e sua saúde de ferro eu entendo ignorar as intempérie e o cansaço. Era lendária a predisposição desses combatentes simplórios nos círculos em que me sagrei guerreiro. Mas o Halfling Druida era igualmente alheio a tudo o que não fosse o combate e a contratação.

E os malditos cães? Ele usava um como montaria e outro menor como “familiar”. Não sei distinguir os milagres naturais de magia arcana, mas realmente o livro que ele vez por outra folheia antes de conjurar suas energias me lembra mais os magos que os servos da Natureza. Como será que aquele exótico halfling conciliou dois mundos tão distantes?

Os cães continuam a latir. Rosnam um para o outro como se fosse uma disputa de ferocidade pouco mais contida. O Halfling e o monge pareciam ignorar. Talvez meu estado levemente febril deixou-me irritadiço. Ou talvez seja o luto por São Michael.

Eu gostava do meio-elfo, embora igualmente não conhecesse bem. Ele era sempre animado para nossas tarefas mais rotineiras. Ele era devoto do deus do Saber, mas jamais se mostrou tão formalista quanto os demais... Às vezes falava empolado diante de lideranças locais, mas só. Ele poderia desfazer minha doença agora se estivesse aqui. Esse pensamento me martiriza por tão elevado grau de egoísmo, mas nada como a divisão de seus bens pelos meus colegas. Eu não deveria reclamar... Estou com sua armadura por insistência do resto do grupo, mas penso em honrar sua busca enquanto o metal luminoso pesar em meus ombros.

- Há algumas semanas o senhor conjurou alguns pégasos para deixarmos o vale de Sangue, lorde Tarzã. – falei ao Druida. – Somos apenas em três agora. Seria uma boa dianteira se pudéssemos contar com tal auxílio agora.

- Ta brincando? – fala ele com uma entoação suspeita. – Gastar uma magia tão alta agora no comecinho?

- Tarzã... – ri o Monge, em um raro lampejo de falta de disciplina dele. Sim, estranhava a sonoridade do nome de nosso acompanhante, mas não a ponto de achar graça.

- Alto. – fala Tarzã. – Alguém vem lá... Guerreiro, prepare sua arma e tome a dianteira.

- Sou Eugene Ironshield, milorde. – falo. – Sangramos juntos por quatro vezes nesse último mês. Tenha a liberdade de...

Não termino minha frase. Realmente as capacidades de ouvir daquele pequeno guardião da selva eram impressionantes, pois passo a ouvir também. Mas estranho a falta de prontidão do grupo... Eu suo a ponto de embaçar a visão. Sempre temo por minha vida ao abraçar um combate. Era a maldita sina daqueles que viajam em busca de aventura.

Ouço um bambolim. Quem em sã consciência andaria por uma floresta repleta de gnols e kobolds fazendo tanto barulho? Insistentemente os meus colegas não demonstravam preocupação com o intruso... Pelo contrário, Tarzã parecia mais calmo do que quando ele percebeu sua chegada.

Enfim nosso visitante surge. Era um elfo verde de vestes práticas, exceto pelo belo bambolim e pelo sabre em sua cintura. Ele dedilhava o instrumento e ostentava um sorriso confiante. Quem era aquele louco para estar nessa zona da floresta?

- Saudações, viajante! – inicia o Monge Shao-lin. – O que fazes nesta passagem.

Lá estava de novo, os estranhos surtos de formalidades dos meus companheiros.

- Eu sou um menestrel em busca de minha musa, e viajo de lá para cá, enfrentando perigos e escrevendo sobre o mundo que testemunho.

Eu não sou do tipo letrado, mas a construção da frase daquele suposto artista era-me estranha. Especialmente porque não via nenhum volume de monta na pequena mochila que o bardo trazia consigo. Mas aparentemente o elfo havia conquistado a confiança do resto do grupo.

- Está bastante longe da civilização, amigo. – atrevo-me. – é uma estrada um tanto dura para quem anda em grupo. Nós mesmo perdemos um dos nossos esta manhã, e éramos em quatro.

- O Guerreiro está certo. – fala Shao-lin, como se igual a Tarzã não lembrasse meu nome. Mas também já vi ele se referindo a Tarzã por Rafael, e ao falecido Michael por “beiçola” durante arranjos de combate.

- Por isso, andará conosco agora. – fala Tarzã, igualmente com empostação na voz. Eu estava horrorizado, pois não tinha como sabermos a real intenção do estranho.

- Poderia dizer a sua graça, meu senhor? – falo enfim.

- Eh... Jackson. – retruca ele com desconfortável hesitação. “Jackson” sem dúvida não era um nome élfico. E outra vez os meus companheiros riem... Shao-lin chega a sussurrar... “Michael... Jackson”.

O jovem sentou-se confortavelmente na nossa clareira, e foi trocando alguns itens com o Tarzã. Estranhamente todos eles pareciam novos, e ele falava como se conhecesse de cor o que Tarzã trazia consigo.

- Guano! Estava mesmo precisando! – comemora o Druida. E eu penso porque um bardo viajaria com Guano entre seus pertences.

- Bem, ainda temos muito chão. – fala Shao-lin. – Já podemos continuar.
- É. – fala Jackson. – Vamos capar o gato, pessoal.

“Capar o Gato”?!?

- Michael?!? É você? – exclamo.

“Capar o Gato” era uma expressão absurda que só tinha ouvido da boca de nosso companheiro Michael. E agora eu percebo a intimidade dele para com os outros dois. Os trejeitos. Tudo o mais.

- Não... Michael não sou eu. Ele morreu esta manhã na emboscada dos gnols, lembra? – fala Jackson.

- Como você sabe, já que não esteve conosco?

- Eh... Temos um contrato. – fala Tarzã tentando desconversar. – Temos de ir...

- Vocês sabiam, não é? – falo entusiasmado. – Quando foi que o trouxeram de volta? E porque ele se disfarça de Bardo? Alias, ele se tornou um elfo puro agora?

- ai-ai roleplay... – sussurra Shao-lin.

- Senhor, eu não sou o Michael. Sou um personagem diferente.

- Dá para irmos logo? Tenho que alimentar as cachorras!

- “Cachorras”? – estranho - Sua matilha era de machos até a pouco, senhor Tarzã? O que está acontecendo aqui? Deveria ser uma alegria o retorno de Sir Michael Eu exijo saber o que está acontecendo!



     Em outro plano de existência, um som silibante de uma lata de coca-cola ressoa despertando a tensão criada por mim e meus companheiros. Beiçola toma um gole enquanto Rafael puxa o D-20.

- Eu vou fazer um teste de diplomacia para o guerreiro se acalmar e seguir conosco. – fala ele.

- Certo. – fala o narrador. – O que Tarzã vai argumentar?

- Tarzã... – ri Henrique, jogador do Monge Shao-lin. – Mas depois disso, vá dar comida para suas cachorras que latindo assim tá incomodando.

- Elas já comeram. – fala Rafael. – Ô Marcelo, não dá para só jogar os dados não? Guerreiro tem Vontade fraca.

- Vejam bem... Ironshield desenvolveu uma afeição pelo clérigo de Beiçola. Se ele continuar agindo como o São Michael, ele vai perceber. Agora ele é o Bardo Jackson, terá que se portar como tal, ou Ironshield vai surtar.

- Quer saber? – fala Beiçola. – Ce colocou o guerreiro para aquela aventura que o Rafael faltou... ‘tamos todo mundo junto, não precisamos mais de NPC.

- Ta demorando para chegar no maldito templo. Eu tenho aula amanhã!

- Okey... O que pretendem fazer com Ironshield?

- Não dá para só esquecer não? – fala Henrique. – Diz que ele voltou para chorar o corpo do Michael ou coisa assim.

Talvez pelo entusiasmo de Mestre Marcelo pelo desfecho da campanha, talvez por sua impaciência de lidar com os demais jogadores desse drama fantástico, eu deixei de existir. Ninguém lembrará que estive ao lado deles quando kobolds seqüestraram a filha do Burgomestre. Minha presteza de proteger Tarzã do zumbi no cemitério de Hamerfield será esquecida. A espada e escudo que estiveram com minha família a gerações serão apagadas da história, assim como meus feitos, os feitos de meu pai, de meu avô. Minha cidade inteira.

Tudo por eu ser incompreendido. Humano, mais humanos que a “criação” dos ditos “personagens de verdade”.

Há justiça nisso?