O que chamam de "O Incidente Sussano'o" foi um dia de grandes desafios para mim e
meus colegas cadetes. Estávamos em exercícios de marcha com Sensei Katsutaro nas terras costeiras quando nos vimos ilhados em uma vila portuária no sul da província de Ichigun devido às tempestades inesperadas de monções fora de
época. As fortes chuvas arruinaram as plantações locais e impuseram um bloqueio
marítimo, impedindo que navios aportassem com suprimentos vitais.
A situação na vila estava desesperadora. Os camponeses
protestam com fome, e ronins desempregados igualmente ilhados se mostravam uma ameaça em
potencial, ameaçando saquear um importante silo imperial que guarda alimento não-despachado pelo mau-tempo. A guarnição dos Daidoji não chegaria a tempo caso os ronins provocassem uma revolta nas próximas horas. Diante dessa ameaça iminente, os mestres encarregados e Katsutaro Sama decidiram
que era hora de agir.
Nós, jovens ainda despreparados, fomos
ordenados a vestir armaduras pesadas e marchar pelos entornos. O objetivo era
criar a ilusão de que os homens aptos para lutar seriam mais numerosos, na esperança de desencorajar saqueadores - eu mesmo tinha 13 anos à época, e meus colegas flutuavam em idades ainda menores.
Embora estivéssemos cientes de nossa inexperiência e das limitações de nosso
treinamento, sabíamos que a honra e o dever exigiam nossa ação.
Com corações valentes e armaduras emprestadas
dos guerreiros mais experientes, marchamos em direção ao silo imperial. O som
das gotas de chuva batendo nas nossas armaduras ecoava como um ritmo de
enfrentamento. Os aldeões famintos observavam nossos movimentos, como se
buscasse alguma falha em nossa formação que demonstrasse fraqueza nos
Guerreiros de Ferro.
Enfrentamos um dilema, pois mal sabíamos
empunhar nossas espadas adequadamente, e tínhamos diante de nós a árdua tarefa
de defender algo que estava além da nossa habilidade. Os Ronins tinham mais
tempo de batalha que a grandíssima maioria de nós e, se os camponeses fizessem
volume em suas forças, seria terrível. Mas não havia tempo para hesitação. Erguemos nossas lanças
com o melhor de nossa determinação, prontos para enfrentar qualquer desafio com
lealdade e coragem.
A medida que nos aproximávamos do silo, os
aldeões e ronins pareciam hesitar. A visão de samurais prontos para lutar era o
suficiente para desencorajá-los de suas intenções de saque. Mas, além disso,
algo incrível aconteceu. Talvez tenha sido uma combinação de respeito e
admiração pela própria imagem dos samurais, ou talvez a percepção da unidade e
determinação em nossos olhos. Por qualquer razão, os saqueadores recuaram e
desistiram de suas intenções imediatas de invadir o silo imperial.
Contudo, a área era ampla. Víamos, durante uma vigilia que durou a noite inteira debaixo de chuva torrencial, pequenos
grupos circulando na escuridão, como se procurassem uma brecha. Tínhamos de
manter a guarda homogênea e firme. Uma única fratura na defesa de ferro poderia
estimular o saque e o caos.
Foi quando meu pequeno pelotão percebeu nas
sombras entre os seixos alguns vultos. Não eram muitos, mas estavam ousados. Esgueiravam temerariamente,
mas constantes. Quando pareciam perto demais, nosso Sempai – o único adulto na
guarnição de sete contando comigo – adiantou-se e deu um comando retumbante para recuar. Sua voz venceu
as águas da chuva que caíam quase como se houvesse um rio sobre nós. Os vultos
se afastaram, mas não dispersaram. Eles provocavam nossa posição.
O Sempai deu um último blefe. Ordenou que nós marchássemos.
Obedecemos, pois era a última jogada antes de um combate. Nesse momento, só me
lembro do branco.
Estava cego e surdo, mas pelos relatos
conflitantes, um raio caiu na ponta de meu cabuto, envolvendo-me com raios e
relâmpagos. Acredito ser um exagero devido ao susto do fenômeno, pois não imagino como eu
sobreviveria se realmente tivesse sido atingido. Mas só fiz o que a disciplina me ensinou agarrei firme na minha lança
para saber onde era em cima e onde era em baixo, e permaneci lá, de pé, completamente alheio do mundo exterior por longos minutos. Sem controle algum de meus movimentos, com as unhas fincadas no lenho da lança que agora era uma muleta.
Este ato afugentou os chacais
que nos espreitavam. E a estória deve ter corrido como o próprio relâmpago pela escuridão até alcançar a aldeia,
pois pontos nefrálgicos similares debandaram. Todos os saqueadores
desapareceram na noite, e não retornaram pela manhã, quando os reforços enfim
chegaram.
Alguns dizem que foi um golpe de sorte, outros
que o próprio Sussano’o encarnou em mim para defender o posto. Só sei que
continuei sentindo gosto de cobre na boca por uma semana, e tendo sonos inconstantes
por um mês. Soube que falam da minha “lenda” entre os camponeses, mas aquele raio
minimizou os feitos de nossos soldados. E pode parecer paranóia, mas desde
então, parece que minha ingratidão aos espíritos do trovão faz pequenos
acidentes ocorrerem ao meu redor.
Até o próximo registro,
Daidoji Ayro
鉄
ハ
ロ
ン